RAMYRIA SANTIAGO É DESTAQUE NOS ANAIS DA COLUNA UOL DA REVISTA PIAUI: Como funciona o assédio judicial contra jornalistas no Brasil. A revista fala sobre o trabalho de Ramyria Santiago em Codó
Anais do cala-boca
“TUDO AQUI É PADRÃO”
Como funciona o assédio judicial contra jornalistas no Brasil
ALLAN DE ABREU
Ramyria Santiago comeu o pão
que o diabo amassou – e chegou aonde queria. Órfã de
mãe aos 6 anos, natural de São Luis/MA. criada pelo
avô, cresceu cercada por dificuldades, estudou menos do que gostaria e, aos 15 anos, já estava colocando a
voz na Rádio Riacho Água Fria, o primeiro passo do sonho de ser jornalista e passou por diversas Radios de tvs de Codó.
Logo em seguida, em abril de 2011, aos
23 anos, tomou a decisão que a tornaria
uma figura conhecida em Codó, sua
cidade no interior do Maranhão: abriu o
Blog da Ramyria Santiago, também conhecido como “Blog rosa” por causa da
cor predominante do layout da página
na internet. Em um dia comum, trabalha pela manhã na afiliada da Rede tv!,
e à tarde opera o seu blog.
“Nele, eu abordo notícias que não
consigo dizer na tevê, principalmente as
policiais. Eu adoro correr atrás de uma
ocorrência policial e gosto muito de ouvir o povo, a comunidade, amo fazer reportagem”, diz a jornalista.
“O blog é o meu lugar de fala, de uma
mulher preta que tem orgulho de ser
quem é, apesar de todo o machismo e o
preconceito, que ainda são fortes por aqui.”
Ramyria Santiago sofreu ameaças e processos, em um estado tradicionalmente
hostil ao jornalismo – na última década,
três jornalistas blogueiros foram assassinados no Maranhão. Em razão de um texto
sobre um jovem acusado de estupro, teve
de se esconder no prédio da tevê para fugir
da agressão de familiares do rapaz. Já fez
matéria sobre um homicida, e recebeu
ameaças por WhatsApp, por meio de uma
ligação feita diretamente do presídio.
Codó, uma cidade pobre a pouco mais
de 300 km de São Luís, tem 114 mil moradores. Os blogs dos dois jornalistas, juntos, Ramyria e marcos somam 400 mil acessos mensais,
segundo a Similarweb, plataforma que
mede a audiência na internet. Para o tamanho da cidade, é uma audiência respeitável. Talvez por isso o advogado Guilherme
Henrique Branco de Oliveira, pré-candidato a prefeito de Codó neste ano, tenha
tido uma reação tão agressiva quando os
dois blogs noticiaram sua prisão pela Polícia Federal, sob a acusação de integrar um
esquema de fraude de aposentadorias do
inss. Em reação, Oliveira optou pelo chamado assédio judicial.
A Associação Brasileira de Jornalismo
Investigativo (Abraji) tem uma definição para o assédio judicial contra
jornalistas: “Uso de medidas judiciais de
efeitos intimidatórios contra o jornalismo,
em reação abusiva a conteúdo de interesse público.” Na prática, o assédio judicial se
manifesta de diversas formas. Pode se dar
pela abertura de uma enorme quantidade
de processos, por processos abertos em
cidades diferentes, por pedidos de indenização de valor altíssimo ou pela desigualdade de forças – a chamada “paridade de
armas” – entre as partes.
Quando Ramyria Santiago e Marco
da Silva, os blogueiros de Codó,
noticiaram a prisão do advogado
Guilherme Oliveira por suspeita de
fraudar aposentadorias do inss, a roda
do assédio judicial começou a girar.
Eles foram os primeiros a noticiar o fato,
inclusive divulgando fotos da ficha prisional do advogado, nas quais ele aparece de frente para a câmera vestindo o
uniforme laranja de presidiário.
Silva responde hoje a 35 processos
movidos por Oliveira. Santiago,30. O argumento central do advogado é que sua
privacidade foi violada com a divulgação
de fotos de presidiário. O advogado também alega que os blogs fazem “publicação de inverdades”. Fosse apenas isso, um
processo bastaria para se defender. Talvez dois, um contra cada blogueiro. Não
era preciso ajuizar mais de 53 ações.
Oliveira ficou apenas um dia detido.
Conseguiu um habeas corpus, mas saiu
indiciado pela Polícia Federal por estelionato, formação de quadrilha e inserção
de dados falsos no sistema de informação
do inss. Desde então, sua prática advocatícia, digamos assim, tem sido investigada pela Polícia Civil e pelo Ministério
Público. Virou réu numa ação penal
acusado de extorsão, apropriação indébita e falsidade ideológica. Teve parte de
seus bens bloqueados e sua carteira da
Ordem dos Advogados do Brasil foi suspensa (no fim de 2023, ele recuperou o
direito de advogar). A população de Codó
sabe de tudo isso porque os blogs de Silva
e Santiago noticiaram caso por caso.
A razão de tantas ações contra os blogueiros apareceu na manhã do dia 12 de
Santiago, no entanto,
nem conseguiu se defender nas primeiras
audiências. “O juiz não me deixava falar”,
diz. Sem advogado, ela foi condenada
em duas ações civis a pagar um total de
10 mil reais de indenização a Oliveira.
Para garantir o pagamento, teve suas contas bancárias bloqueadas e o benefício
social que recebia, que pertence a sua irmã
deficiente intelectual foi penhorado. “Fiquei sem dinheiro nenhum e tive que
fechar uma pequena loja de calçados no
Centro de Codó.” Sua situação só mudou
quando pediu ajuda ao Tornavoz, que
atua na defesa jurídica de jornalistas. Desde então, Santiago não voltou a ser condenada. Ela se emociona quando relembra
da primeira audiência com os advogados da
entidade. “Só ali eu me senti respeitada.”
Entre as centenas de processos mencionados nesta reportagem, apenas Ramyria
Santiago foi condenada em dois casos. Em
todos os outros que já foram julgados, os
assediados foram absolvidos. Ainda assim,
num sinal de que o assédio judicial dispensa a condenação para surtir efeito, já houve impacto profundo.
A piauí teve acesso exclusivo a um
levantamento realizado pela Abraji na
Justiça brasileira. Mostra que, entre os
quase 6 mil processos em curso que
tratam da liberdade de expressão, há
654 ações contra jornalistas que podem
ser caracterizadas como assédio judicial.
(O levantamento não inclui processos que
correm em segredo de Justiça.) A pesquisa
encontrou ações em que os pedidos de indenização chegam a 30 milhões de reais.
“O assédio judicial contra o jornalismo não se limita a casos isolados. É algo
sistemático, que nem o uso de técnicas
rigorosas na apuração de um fato pelo repórter consegue evitar”, diz Letícia Sarmento Kleim, assistente jurídica da Abraji.
A situação se agravou de 2019 para cá,
depois da ascensão da extrema direita ao
governo com Jair Bolsonaro. Dos 654 processos em tramitação, 434 têm menos de
cinco anos. “É paradoxal que a extrema
direita invoque com frequência a liberdade de expressão absoluta para defender
discurso de ódio, mas se diga ofendida
com críticas oriundas do jornalismo profissional, muitas delas baseadas em fatos”,
diz o desembargador André Gustavo Corrêa de Andrade, do Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro, especialista no
tema liberdade de expressão.
O número 654 não parece alto – dá
uma média de 25 processos por estado –,
mas há indicadores de que o Brasil está
entre os países que mais hostilizam seus
jornalistas no plano judicial. O Media
Defence, uma ong baseada em Londres
que custeia a defesa jurídica de repórteres
em todo o mundo, já bancou as despesas
de 1 450 profissionais desde sua fundação, em 2008. O maior número – 249 – é
de brasileiros. Em segundo lugar, aparecem os jornalistas do Azerbaijão, com
195 casos. Em terceiro, a Rússia, com 103.
O caso do Brasil é um dos mais agudos
do mundo pela combinação de dois fatores. Um deles é cultural. A Constituição
de 1988 consagrou a liberdade de expressão, mas o conceito nunca foi apreendido
pela sociedade brasileira. “A liberdade de
expressão foi imposta aos brasileiros pela
Constituição sem que houvesse um substrato social que apoiasse o conceito”, diz
a advogada Taís Gasparian, fundadora do
Tornavoz, entidade baseada em São Paulo que atua na defesa jurídica de pessoas
processadas pelo exercício da liberdade
de pensamento e expressão. “Um sinal de
que somos imaturos para lidar com a livre
circulação das ideias é que no Brasil da
herança coronelista já se nasce com honra, e todos sabemos que honra se constrói,
não é hereditária”, completa Gasparian.*
O outro fator é o funcionamento da
Justiça. Em 1995, com a criação dos Juizados Especiais Cíveis (jecs), o acesso ao
Judiciário, sobretudo para garantir os direitos do consumidor, tornou-se mais amplo e democrático – o que representou um
avanço. Nos jecs não é preciso contratar
advogado, nem pagar taxa, nem se exige
que o autor ingresse com ação na comarca
do réu, como manda a lei nos demais casos. Mas não demorou muito para que as
facilidades dos jecs fossem distorcidas,
abrindo caminho para o assédio judicial.
No caso dos jornalistas, segundo o levantamento da Abraji, dois terços dos 654 casos de assédio tramitam nos jecs. “No
assédio judicial, o objetivo da pessoa, da
empresa ou da entidade não é vencer as
ações, mas causar transtornos à empresa
de mídia e ao jornalista, que são obrigados
a se defender em cada um dos processos,
gerando perda de tempo e de dinheiro”,
diz o desembargador Corrêa de Andrade,
do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
Um dos primeiros usos abusivos dos
jecs aconteceu em São Paulo. Entre
1997 e 1998, alguns episódios do progra-
* A advogada Taís Gasparian defende a piauí em seis
processos judiciais.
ma humorístico Casseta & Planeta, então exibido pela tv Globo, satirizaram a
truculência dos policiais militares que
haviam sido flagrados extorquindo dinheiro e executando moradores da favela Naval, na periferia de Diadema,
Região Metropolitana de São Paulo. Na
ocasião, 270 policiais do 24º Batalhão da
pm ingressaram com 132 processos contra a emissora por danos morais no jec.
A Globo venceu todas as ações, mas a
porteira para o assédio estava aberta.
A Igreja Universal do Reino de Deus
percebeu logo.
Em janeiro de 1997, a revista IstoÉ publicou uma reportagem sob o título
O calvário do bispo. O repórter Gilberto Nascimento narrava as dificuldades
do bispo Edir Macedo com a queda do
faturamento anual da Igreja Universal
do Reino de Deus, que ele fundara vinte anos antes. Incomodado com a reportagem, um grupo de pastores apresentou
cinco queixas-crime contra o repórter,
além de uma ação por danos morais.
Gilberto Nascimento ganhou todas.
Em 2006, a tática voltou a ser aplicada.
O programa Linha Direta, também exibido pela Globo, tratou do assassinato do
jovem Lucas Terra por dois pastores da
Universal, em Salvador, em 2001. Fiéis e
pastores protocolaram 96 ações em jecs,
sendo 3 em lugares distantes da Bahia,
como Juína, em Mato Grosso, e Buritis,
em Rondônia. Logo surgiu a suspeita de
que se tratasse de uma ação coordenada
pela Universal, considerando que os textos
das representações judiciais eram quase
idênticos, embora os autores estivessem
em diferentes regiões do país. A Globo
ganhou todos os 96 processos. (No ano
passado, os dois pastores foram condenados a 21 anos de prisão pelo crime de
2021. Ainda cabe recurso.)
Chegou então a vez do jornal A Tarde,
de Salvador. Em 2007, o diário publicou
uma reportagem mostrando que um fiel
da Universal entrara em uma igreja católica e destruíra uma imagem de São
Benedito datada do século xviii. Em entrevista ao repórter Valmar Hupsel Filho,
de A Tarde, o acusado disse que quebrara
a imagem durante um surto psicótico depois de ouvir a pregação de um pastor da
Universal criticando o culto de imagens
entre os católicos. A Universal entrou na
Justiça pedindo 2 milhões de reais de indenização, enquanto pastores da igreja
abriram sessenta processos contra o jornal. “Tivemos de contratar advogados
em várias comarcas pelo Brasil”, lembra
a advogada Ana Paula Moraes. A Tarde,
o mais antigo jornal da Bahia em circulação, ganhou todos os processos.
No mesmo ano de 2007, a Universal
aplicou a tática do assédio judicial na sua
extensão máxima. A repórter Elvira Lobato publicou uma reportagem na Folha de
S.Paulo mostrando o crescimento fabuloso do patrimônio da Universal, que estava
completando três décadas de existência
naquele ano. Eram 23 emissoras de tevê e
40 emissoras de rádio, além de 2 jornais
diários e 1 empresa de táxi-aéreo em nome
de membros da igreja. Lobato conhecia
bem o assunto. Anos antes, ela publicara
no mesmo jornal uma matéria sobre as
contas da Universal em paraísos fiscais.
Nas duas reportagens, Lobato procurou a
Universal, que não quis se manifestar.
Um mês depois da veiculação da matéria sobre o patrimônio da Universal, surgiam notícias de que havia uma estranha
proliferação de ações judiciais contra a
repórter e a Folha. Havia ação em Coari,
no interior do Amazonas. Ação em Aripuanã, em Mato Grosso. Ação em Lago
da Pedra, no interior do Maranhão. Eram
movidas por pastores e fiéis, todos se dizendo ofendidos com o conteúdo da reportagem. No total, foram 103 processos,
todos abertos em jecs e todos com textos
muito semelhantes entre si. De novo, a
suspeita de um movimento orquestrado.
Como na época não havia audiência
por videoconferência, Lobato, que até então só fora processada uma única vez por
seu trabalho jornalístico, teve de se deslocar de Norte a Sul do país para se defender.
A faina durou dois anos, período em que
teve dificuldade de trabalhar em razão do
excesso de audiências. “Foi um terremoto
na minha vida. Meu trabalho estava correto, eu estava devidamente documentada
em tudo o que eu afirmava na reportagem. Até então eu achava que a verdade
era um escudo protetor do repórter, mas
eu estava enganada. Não era a verdade
que estava em jogo ali”, diz. Lobato e a
Folha venceram todas as 103 ações.
Já que a vitória não é o objetivo, a Universal nunca deixou de recorrer ao assédio. Em 2020, veio a público o caso do escritor João Paulo Cuenca, conhecido
como J. P. Cuenca. Indignado com a distribuição de verbas públicas do governo
Bolsonaro para emissoras de rádio e tevê
das igrejas evangélicas, ele escreveu no
então Twitter: “O brasileiro só será livre
quando o último Bolsonaro for enforcado
nas tripas do último pastor da Igreja Universal.” Em poucos minutos, a postagem
foi inundada por ataques, e nada adiantou explicar que se tratava de uma paráfrase de um conhecido excerto do abade
francês Jean Meslier (1664-1729): “O homem só será livre quando o último rei for
enforcado nas tripas do último padre.”
Cuenca foi demitido da sucursal brasileira da Deutsche Welle, rede de mídia
alemã onde escrevia uma coluna quinzenal, acusado de propagar o ódio. No mês
seguinte, começaram as ações por danos
morais nos jecs país afora – em Cruzeiro
do Sul, no Acre, em Santa Quitéria, no
Ceará, em Mafra, em Santa Catarina.
Em cinco meses, respondia a 145 processos. “Eu entrei em pânico, não sabia o
que fazer. Eu teria que contratar advogado e tinha acabado de perder meu emprego de colunista”, relembra ele, que
relatou seu tumulto em depoimento publicado pela piauí (Nada é mais antigo
que o passado recente, piauí_172, janeiro
de 2021). Sua situação só foi amenizada
quando passou a ser defendido por advogados contratados pela Media Defence.
Até o fim de março, Cuenca não fora
condenado em nenhum processo.
Procurada pela piauí, a Universal nega
a promoção de assédio judicial, tanto no
caso de Elvira Lobato quanto no caso de
Cuenca. Em nota, disse ter movido uma
única ação contra Lobato, “uma vez que
foi ofendida diretamente (bem como foram milhões de seus fiéis em todo o país)”
e “não houve qualquer advogado da Universal atuando nesses supostos processos
relativos à jornalista”. Sobre Cuenca, disse
que “a Constituição Federal do Brasil assegura a todos […] o direito de acesso à Justiça”. E completou: “Como vítima maior do
preconceito religioso no Brasil, a Universal preza e defende todas as liberdades asseguradas pela Constituição Federal.”
O pastor Ricardo Wagner da Silva,
que assinou ações judiciais tanto contra
Lobato quanto Cuenca, tem outra história para contar. Ele deixou recentemente
a Universal e hoje mora em Barra do Garças, no interior de Mato Grosso. “Quando
eu estava na instituição, a gente era levado pela direção a fazer isso aí”, diz ele,
explicando porque moveu a ação contra
os dois jornalistas. “Não tinha como dizer
que não, eu fazia parte da instituição.
[A igreja] escolhia alguns [pastores], não
eram todos. Você não tem direito de escolher, dizer que não [quer assinar]”, disse.
O vendaval de processos para tumultuar a vida dos jornalistas ou dos
veículos de imprensa não é a única
tática em curso. A litigância contumaz,
como se define a prática de sair processando todo mundo, é também uma forma de
intimidação. Quando se publica uma reportagem contra um litigante contumaz,
já se sabe que virá um processo – e essa
ameaça velada e constante tende a desestimular os profissionais e seus veículos.
A Associação Nacional Movimento
Pró-Armas, que reúne colecionadores de
armas, atiradores desportivos e caçadores, os chamados cacs, é uma litigante
contumaz. Entre 2021 e o ano passado,
abriu dezessete ações judiciais –, nenhuma com sucesso até agora. Quando um
veículo publica uma crítica aos cacs ou
à Proarmas, lá está a associação recorrendo à Justiça. Nos seus pedidos de indenização estão aqueles valores exorbitantes,
que batem em 30 milhões de reais. Mas
o assédio judicial promovido pela Proarmas tem um destaque. A entidade conjuga duas táticas: a litigância contumaz
com a proliferação de processos.
Em abril de 2020, quando o economista Ricardo Sennes criticou na tv Cultura
a decisão de Bolsonaro de afrouxar o controle sobre a circulação de armas no país,
a Proarmas entendeu que havia sido chamada de “traficante de armas”. Era uma
interpretação hiperbólica, mas pouco importa. Marcos Pollon, presidente da Proarmas e atualmente deputado federal pelo
pl de Mato Grosso do Sul, fez um vídeo
no YouTube ensinando os cacs a processar Sennes. Era um tutorial do assédio. Mandava buscar no Google nome
completo, cpf e endereço profissional do
economista, orientava a preencher um
requerimento, mandava o link do comentário de Sennes na tevê e dizia qual acusação deveria ser feita. Com detalhes: “Pede
indenização de até vinte salários mínimos.
Você vai no Juizado Especial e processa
esse sujeito. Muito melhor do que ofender
em rede social”, disse Pollon.
Com a orientação, 93 cacs abriram
processo, quase sempre em pequenas cidades do interior. Com o advento das audiências virtuais, pelo menos o assediado
evita ficar em tour permanente pelo país.
Sennes estima ter participado de umas
quarenta audiências virtuais. “Havia casos em que o autor da ação nem sabia em
qual veículo de mídia eu tinha feito o
comentário. Dezenas de cacs anexaram
nos processos fotos da tela do vídeo do
meu comentário tiradas exatamente no
mesmo horário”, diz. Até março, Sennes
fora absolvido em 91 ações. Duas aguardavam sentença. Procurado pelo piauí,
Pollon não se manifestou.
Apesar das evidências de uso abusivo
dos processos, a Justiça até hoje não tomou providências concretas para barrar
o assédio judicial. Afinal, a lei proíbe a
litigância de má-fé. “O Judiciário brasileiro tem uma porta aberta para esse
tipo de perseguição que ninguém se
preocupa em fechar. É um revólver engatilhado na cabeça de todo mundo”,
diz o jornalista e escritor J. P. Cuenca.
O procurador Julio José Araujo Junior, do Ministério Público Federal do
Rio de Janeiro, examinou 110 pedidos de
indenização por parte dos pastores da
Igreja Universal no caso de Cuenca. Em
95 deles, encontrou apenas dois padrões
de texto. “Os padrões adotados tornam
difícil crer em iniciativas isoladas ou não
estimuladas”, escreveu Araujo em seu
relatório. Por isso, ele está estudando a
possibilidade de entrar com uma ação
civil pública contra a Universal. O procurador também criou um fórum com
entidades ligadas à liberdade de expressão para debater estratégias contra o uso
do Judiciário para fins persecutórios.
Hoje, o Judiciário não tem nenhum
mecanismo para identificar o assédio
judicial. “Confesso que eu teria dificuldade em saber se um réu por ação de
dano moral que tramita na minha vara
responde a ações idênticas em outras varas pelo país”, diz Tom Alexandre Brandão, titular da 2ª Vara Cível da Comarca
de São Paulo. Em 2022, com a repercussão do caso de J. P. Cuenca, o Conselho
Nacional de Justiça recomendou aos
tribunais a “adoção de cautelas visando
coibir a judicialização predatória que
possa acarretar o cerceamento de defesa
e a limitação da liberdade de expressão”.
Para os especialistas no tema, a medida
é saudável, mas é tímida demais diante do
tamanho do problema. A advogada Taís
Gasparian defende a adoção de uma abordagem tripla. É preciso, diz ela, impedir o
ajuizamento de processos múltiplos onde
há abuso, extinguindo tais processos na
largada. Em segundo lugar, deve-se punir
o abuso com multas de alto valor para desestimular esse tipo de litigância de má-fé
(atualmente as multas raramente ultrapassam 4 mil reais). Por fim, ela recomenda
que as ações sejam reunidas no foro do
domicílio do réu, o que ajudaria a minimizar as consequências do assédio.
Embora na Europa o assédio judicial
contra jornalistas não tenha a mesma dimensão que no Brasil, a União Europeia
tomou providências para reduzir os riscos
em março deste ano. Definiu que, quando claramente atentam contra a liberdade
de expressão, as ações contra jornalistas e
ativistas de direitos humanos devem pagar
caução para cobrir as custas processuais e
devem ser indeferidas liminarmente quando forem “manifestamente infundadas”.
Nos Estados Unidos, intimidar um repórter é ainda mais difícil. Desde 1964,
vigora o entendimento jurídico de que o
demandante de uma ação por danos morais precisa provar não apenas que os fatos
noticiados são inexatos, mas também que
o jornalista tinha a intenção de ofender.
No Congresso Nacional, tramita um
projeto de lei que prevê reunir em um único julgamento todas as ações por danos
morais que se relacionem à liberdade de
expressão contra uma mesma pessoa. Em
2021, a Abraji protocolou uma ação no Supremo Tribunal Federal (stf) com uma
proposta semelhante. Pedia que as ações
que configurem assédio e estejam tramitando nos jecs contra jornalistas sejam
todas julgadas de uma só vez e no foro do
jornalista. Em outubro passado, a então
ministra Rosa Weber rejeitou o pedido.
Os demais ministros ainda não votaram.
A paralisia do Judiciário diante do problema pode ser explicada, em parte, pelo
uso que os próprios integrantes do Judiciário fazem do assédio. De todos os casos
em curso na Justiça hoje, 16% foram ajuizados por profissionais do próprio Judiciário, segundo a Abraji. “Em abstrato,
todos os juízes concordam com a importância da liberdade de expressão”, diz
Rafael Mafei, professor-associado da Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo (usp). “Mas quando ocorrem
casos concretos, reclamam da sua honra
ferida.” Um caso, ocorrido em Curitiba,
é uma ilustração perfeita do ponto mencionado pelo professor Mafei.
Em fevereiro de 2016, cinco repórteres
do jornal Gazeta do Povo publicaram
uma matéria sobre ganhos estratosféricos de juízes e promotores do estado do
Paraná. Em um único mês, dizia a matéria, algumas autoridades haviam recebido
até 180 mil reais, um valor muito acima
do teto constitucional de 30,4 mil reais
vigente na época. A alta remuneração
decorria, como sempre acontece nesses
casos, do acúmulo de penduricalhos – é
auxílio-moradia, auxílio disso, auxílio
daquilo – que existem para driblar o teto
e adubar os ganhos. “Não havia ilegalidade, mas a imoralidade era evidente”, diz
Rogério Galindo, um dos autores da reportagem, que reuniu dados públicos,
disponíveis nos sites do Tribunal de Justiça e do Ministério Público.
A publicação incomodou os juízes e
promotores. De uma hora para outra, os
repórteres viraram réus em 42 ações judiciais por danos morais ajuizadas em várias cidades do Paraná. Não havia nada
de espontâneo. Um blog de Curitiba
publicou um áudio em que o então presidente da Associação dos Magistrados
do Paraná, Frederico Mendes Júnior,
conclamava os colegas a ingressarem
com ações individuais. “Já estamos providenciando um modelo de ação individual, feito a muitas mãos, por vários
colegas, e com viabilidade de êxito.”
A Gazeta do Povo alugou uma van
para levar os jornalistas às audiências –
todas presenciais – pelo interior do Estado. Foram três meses de deslocamentos
constantes. Certa vez, percorreram 600 km,
entre Curitiba e Medianeira, no extremo
Oeste do estado, só para participar de
uma audiência de conciliação. “Eu tinha
filho pequeno na época”, lembra Galindo. “O Chico ia estudar na Inglaterra.
A mulher do Euclides estava grávida”.
Chico Marés e Euclides Garcia eram outros dois autores. Evandro Balmant e Guilherme Storck completavam o quinteto.
Como os processos continuassem chegando, o departamento jurídico do jornal
resolveu recorrer ao stf, alegando abuso
do direito de ação por parte dos juízes e
promotores. Pedia uma liminar suspendendo a tramitação dos processos e solicitava que fossem todos reunidos numa
única ação, a ser julgada pelo próprio stf.
No dia 20 de maio de 2016, três meses depois do início do assédio judicial, a ministra Rosa Weber negou o pedido. “Cumpre
anotar que a Constituição da República
confere especial proteção, na condição de
direitos fundamentais da personalidade, à
honra e à imagem de toda e qualquer pessoa, assegurando o direito à indenização
pelo dano material ou moral decorrente
de sua violação”, argumentou a ministra.
Os magistrados estavam confiantes
do sucesso da empreitada. Tanto que,
semanas mais tarde, numa audiência
em Paranaguá, o juiz Walter Ligeiri Júnior sentiu-se à vontade para ameaçar
os jornalistas. “Depois dessa decisão do
Supremo, vocês vão viajar muito o Paraná. Vão conhecer todas as comarcas,
todos os juízes”, ironizou, dirigindo-se
aos jornalistas presentes. Não escondeu
que havia uma ação orquestrada. “Tudo
aqui é padrão”, disse “A inicial é padrão,
a contestação é padrão.” E anunciou
que a situação dos jornalistas só ia piorar, diante da mobilização dos juízes.
“Montamos um grupo, e estamos chamando outros. E estamos falando com
mais duzentos para as próximas ações.
São setecentos juízes preparando ação.”
Ligeiri Júnior, porém, desconhecia
um detalhe: um dos jornalistas estava gravando tudo. A defesa jurídica da Gazeta
voltou ao stf, desta vez anexando o áudio
das ameaças do juiz. A ministra Rosa Weber concedeu liminar suspendendo todas
as ações. “O abuso do direito de ação com
a finalidade de se obter vantagem colateral – chilling effect – dos órgãos de imprensa não pode ser chancelado pelo
Judiciário”, escreveu Weber, recorrendo à
expressão em inglês para designar o “efeito inibidor” do assédio judicial. Somente
em setembro do ano passado o plenário
do STF julgou o mérito da ação, decidindo a favor dos jornalistas por 9 votos
a 2. Nem Mendes Júnior, hoje presidente
da Associação dos Magistrados Brasileiros, nem Ligeiri Júnior, que permanece
trabalhando em Paranaguá, responderam
aos pedidos de entrevista da piauí.
Em ações movidas por juízes, os casos
em que falta paridade de armas não são
incomuns. O mais notório envolve o jornalista Rubens Valente, que escreveu
Operação banqueiro, um livro-reportagem publicado pela Geração Editorial, no
qual lança dúvidas sobre a lisura do ministro Gilmar Mendes, do stf, em ações
judiciais relacionadas a uma investigação
de corrupção e lavagem de dinheiro envolvendo, entre outros, o banqueiro Daniel Dantas. O ministro processou o
jornalista, perdeu na primeira instância,
mas ganhou em todas as outras até chegar
ao stf, onde, contando com quatro votos
favoráveis de seus colegas da primeira turma, teve dupla vitória. O jornalista foi
condenado a pagar uma indenização de
310 mil reais e publicar na íntegra a sentença condenatória numa eventual reedição do livro – o que, por aumentar em
30% o tamanho da obra, inviabilizou
novas edições. Como não cabe mais recurso no Judiciário brasileiro, a Media
Defence denunciou o caso à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos.
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/como-funciona-o-assedio-judicial-contra-jornalistas-no-brasil/